COMPADRE GILDO

>> 19 de out. de 2007

Teixeirinha e Gildo de Freitas em 3/03/1967 (Aniversário de 40 anos de Teixeirinha)


O menino Victor Mateus Teixeira tinha apenas 10 anos de idade quando Leovegildo José de Freitas (então com 18 anos) foi preso pela primeira vez. Este rapazote, mais conhecido como Gildo de Freitas, nascera em 1919, no interior rural de Porto Alegre. Ele seria preso mais de quarenta vezes, mas não se tornou conhecido por sua ficha policial. Ao contrário: Gildo seria para sempre o “Trovador dos Pampas”.
Até os anos 1950, Gildo de Freitas era um amador. Entre uma confusão e outra, apresentava-se em pequenos bailes por todo o Rio Grande do Sul. Já era conhecido como um trovador de respeito. Mais do que isso, era visto como imbatível, como o melhor repentista do Estado. Por volta de 1953, começou a cantar ao vivo nas rádios da capital, passando a ser um dos artistas mais populares do Estado. Nesta época, ele conheceu o jovem Teixeirinha, um outro amador que buscava seu espaço. A amizade foi natural e, em 1955, os dois saíram pelos pampas animando bailes e festas. Neste período, a dupla Gildo de Freitas e Teixeirinha (que não era o mais conhecido) viveu intensas aventuras. Certa feita, estavam há horas trovando. Cansado e querendo liquidar a história, Gildo lançou um verso onde denunciava a “imoralidade” de um casalzinho que dançava mais apertado no fundo do salão. Logo se formou a confusão e os dois trovadores, satisfeitos, já foram guardando os instrumentos. De repente, um tiro silenciou o entrevero. Um sujeito forte e bigodudo aproximou-se dos cantores de arma na mão e falou de forma ordeira: “Eu sou o delegado e garanto que não vai haver mais briga. Os moços podem tocar tranqüilos até de manhã!”
Mas a vida desordenada de Gildo não combinava com o espírito visionário de Teixeirinha e a dupla não perdurou. Continuaram amigos, mas cada um seguiu seu caminho. Em 1959, como conseqüência natural de seu talento, Teixeirinha foi gravar em São Paulo. Gildo, indeciso sobre sua própria carreira, hesitava entre a música e a vida no interior. Em 1963, já consagrado, o “Rei do Disco” gravou seu primeiro LP com músicas de outros autores. No disco “Teixeirinha interpreta músicas de amigos”, o cantor lançou logo na segunda faixa a música “Cobra sucuri”, de Gildo de Freitas. Pereira, então diretor da gravadora Chantecler, agradou-se do arrasta-pé e quis conhecer o autor da música. No mesmo ano, Gildo de Freitas realizaria suas primeiras gravações.
Apesar de ter sido gravada por Teixeirinha, “Cobra sucuri” era uma provocação ao “Rei do disco”. Ela fazia parte de um acordo prévio, entre ele e Gildo. No trato (proposto pelo trovador) eles iniciariam uma guerra de rimas, uma espécie de trova pelos discos. Um faria o golpe e o outro o contragolpe. Gildo queria vender discos e tornar-se conhecido. Teixeirinha precisava manter-se na parada de sucessos. A fórmula era perfeita.
No mesmo ano de 1963, Teixeirinha lançou a música “Cobra jibóia”. O nome de Gildo não figura em momento algum, mas a resposta à “Cobra sucuri” está explícita em versos como este:



Conseguiu matar a cobra
Lá de cima eu não desci
Meu compadre estava brabo
E eu quase morto de rir

Ele perguntou porque
Eu então lhe respondi
Cobra comprida demais
O senhor não pode engolir



Gildo não perdeu tempo em responder. Gravou “Abre o olho rapaz”, iniciando oficialmente aquela que seria, talvez, a maior guerra musical entre dois cantores na história do Rio Grande do Sul. Diante do público, Teixeirinha e Gildo de Freitas tornaram-se inimigos mortais, embora – como o próprio Teixeira afirmou – saíssem para tomar uma cerveja juntos quando todos pensavam que iam se matar. Na primeira resposta a Teixeirinha, Gildo preferiu um ataque ameno:



Essa história de jibóia
Que o Teixeira tem contado
Que a jibóia me engoliu
Mas não foi por descuidado

Ela abriu-se eu saltei dentro
Depois cheguei lá no centro
Pra descansar um bocado...
Mas naquela mesma hora
Ela abriu-se eu saltei fora
Mas, porém, do mesmo lado



Mas a briga esquentaria... e muito! Começou a ficar boa mesmo quando Gildo lascou uma absurda infinidade de bons versos na célebre “Baile de respeito”:



Eu fui num baile
Donde tava o Teixeirinha
Já criando ladainha
Cheguei arrastando a espora
Preguei-lhe o grito
Hoje o baile tem respeito
Olhei firme pro sujeito
E já se mandou porta afora



Foi o estopim. Dali para frente a guerra estava definitivamente declarada. Em 1965, Teixeirinha dispara “Baile de mais respeito”, a resposta a Gildo. Antes mesmo dos primeiros versos, ele craveja: “Te prepara, Gildo Freitas, que esta vai pra ti! Petiço por petiço, tu também é!” Era a “resposta à caráter” para a declaração feita por Gildo num dos intervalos do “Baile de respeito”: “E vai te mandando nanico! Petiço da perna curta tem que largar primeiro!”.
Nos versos, “Baile de mais respeito” detona Gildo:



Dei um grito: - Pára gaita!
Teixeirinha está chegando
Perguntei pro Chico Torto:
- Quem é que aqui está mandando?

Me diz que é o Gildo de ‘Freita’
Que o povo está respeitando
Eu disse: - Não manda mais!
Trunfo é pau e o meu é ás
Disparou, gritei detrás:
- Te arranca, que tão pegando!



E não parou por aí. Em 1966, Teixeirinha mexeu no assunto das cobras novamente. Desta vez ele gravou “A cobra cascavel”, uma das jóias da briga:



Compadre Gildo de ‘Freita’ me disse
Pra eu me virar numa cobra comprida
Pra engolir ele com espora e tudo
Perca a esperança, a parada é perdida

Eu vou ficar no mundo pra semente
Comigo ‘fica’ dez ‘mulher querida’
Fazendo letra de todas as ‘cobra’
Que por ti todas já foram ‘engolida’
Não adianta mudar teu destino
Tu vai comer cobra toda tua vida



Mesmo com as dificuldades de saúde – e também sofrendo com as indecisões da gravadora – Gildo de Freitas continuou alfinetando Teixeirinha. Na realidade, a briga discorreu pelos anos 1970, e chegou a momentos mais tensos. Depois dos bailes e das cobras, eles descambaram para as armas. Teixeirinha gravou “Relho trançado”, “Facão de três listas”, “Adaga de esse” e “Dois quarenta e cinco” (embora esta pareça não ser para Gildo). O “Trovador dos pampas”, por sua vez, respondeu com “Resposta do relho trançado”, “Resposta do facão três listas” e “Resposta da adaga de esse”. Ainda nas respostas, se atreveu a provocar Teixeirinha em um de seus maiores sucessos. Em “Resposta da milonga”, Gildo alfineta a “Milonga da Fronteira” e seu autor:



Ô Teixeirinha, um dia destes
Eu andei lá na fronteira
Lá adonde tu perdestes
Pra gaúcha milongueira

Um lugar muito bonito
A china bonita e bela
Só achei muito esquisito
Tu ter perdido pra ela



Conforme os anos foram passando, a briga foi se acentuando. Surgiram outras canções: “Não enjeito proposta” e “Não mexe com quem está quieto” (Gildo de Fretas) e “Foi tu que mexeu comigo” (Teixeirinha). No fim dos anos 1970, Gildo fuzilava Teixeirinha com versos onde chamava o cantor de “nanico”, “gaúcho fingido”, “guaipeca” e por aí vai. As fofocas sobre o rompimento entre os dois começaram a circular por toda a parte. Um dia, depois de tanto falatório, acabaram brigando de fato. Foi aí que Teixeirinha compôs o “Cachorro velho”, música de letra forte que diz no refrão:



Te desrecalca cachorro
Cachorro velho, recalcado
Anda rosnando o meu nome
Parece que está com fome
Pedindo o relho trançado



Desta feita, Gildo não pôde responder. A “Resposta do cachorro velho” era tão forte que a Censura (alguns dizem que foi a própria gravadora) proibiu que fosse lançada. A fita com a canção existe, mas ninguém sabe onde está (é mais uma raridade!). Tempos depois, Gildo voltou à carga com “Baile dos cabeludos”, uma canção bem-humorada e mais amena onde ele considerava Teixeirinha novamente como compadre (esta relação, até onde se sabe, só existiu nas gravações, pois um não registrou nenhum filho do outro). Na letra, um toque de bom humor:



E o meu compadre Teixeira, quando terminou a rinha
Se agarrou num cabeludo dizendo assim – “Esta é minha!”
Que menina parecida com a Mary Terezinha
Fui obrigado a gritar – “Larga o homem, Teixeirinha!”



Mas o “cessar-fogo” durou pouco. Em seguida Gildo resolveu provocar novamente com “Que negrinha boa” (infelizmente não tenho esta letra), onde ele debochava de Mary Terezinha. A resposta de Teixeirinha estava pronta para ser gravada em 1983, mas Gildo estava internado no hospital Nossa Senhora da Conceição e o “Rei do disco” preferiu guardá-la. O passar dos dias começou a apontar para o fim definitivo da briga com Gildo de Freitas. O “Trovador dos pampas” estava em fase terminal, vítima de efisema pulmonar, cirrose, problemas cardíacos, cerebrais, hemorragias e etc. Já passava os dias sentado, abraçado ao violão e “conversando com Deus”. Na madrugada de 4 de dezembro, faleceu em casa.
Depois da morte de Gildo de Freitas, Teixeirinha compôs “Compadre Gildo”, uma última e especial homenagem ao amigo. Nos primeiros versos, Teixeira mostra que aquela briga não era tão séria assim...



Compadre Gildo de Freitas
Encerrastes a carreira
Acabou a nossa guerra
Que era pura brincadeira



Em 1984 a história de Gildo de Freitas virou livro e Teixeirinha falou pela primeira vez sobre a briga dos dois. Na entrevista que deu ao autor do livro, o jornalista Juarez Fonseca, “O gaúcho coração do Rio Grande” revelou: “Já nos últimos anos, ele me deu de presente de aniversário um relógio de prata antigo, que até hoje guardo. A gente sempre olhou um pelo outro. Para ajudar ele, o quê que eu não fazia? As fofocas e besteiras que inventaram a nosso respeito não foi culpa nossa.” Dois anos depois, numa mesma madrugada de 4 de dezembro (agora de 1985), era a vez de Teixeirinha partir. Onde quer que estejam desde esta data, devem estar trovando...

Com a colaboração dos amigos Moisés Simões Moreira e Arnaldo Guerreiro

4 comentários:

Anônimo 20 de outubro de 2007 às 05:58  

Obrigado Chico!
Ótima matéria! Está de PARABÉNS. Sou um admirador desde cedo desta "briga" de Teixeirinha e Gildo. Me divirto ouvindo estas belas melodias, fiz até uma lista de reprodução no meu computador aonde organizei todas essas músicas e suas "respostas".
Valeu Chico!

(...)"o relho por cima e o facão por baixo e esse caro macho corto a laço e furo"(...)

(...)"não tenho medo de facão três listas e nem tão pouco de relho trançado eu levo a vida como um bom artista nasci com calma e não sou assustado"(...)

SENSACIONAL!

Anônimo 21 de outubro de 2007 às 07:59  

A MÚSICA 'LÍNGUA DE TRAPO' É PARA O GILDO DE FREITAS? BEIJOS!

Jaison 2 de novembro de 2007 às 17:34  

A música lingua de trapo era para Flavio Cavalcanti, alias chico, outra boa polemica para abordar.
Em tempo, a música "relho trançado"
não parece ser para o Gildo.
havia mais alguém nesta ronha.
A música de José Mendes "conversa fiada" indica alguma questões que não sei identifica para quem era.

Anônimo 7 de novembro de 2007 às 02:35  

(...) Mais depois daquela prova, por "acauso" aconteceu pra tocar com a fronteirista outro violeiro apareceu, visto na primeira prova a fronteirista perdeu hoje ele vive com ela e quem tá sofrendo sou eu (...)

Este Gildo de Freitas era mesmo criativo, se colocou como o "outro violeiro" na prova com a "Fronteirista Linda" e acabou ganhando a moça, numa música que nem era para "ele".
Pena, que esta "briga" com Teixeirinha tenha durado tão pouco.

Gildo X Teixeirinha... Faz falta!!!

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