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>> 29 de set. de 2007

"O Ébrio" (1936)


Por mais que se esforce, nenhum cantor é completamente original. Que o diga o “Rei do Baião”, Luiz Gonzaga, que declarou publicamente ter-se inspirado no gaúcho Pedro Raymundo para compor seu personagem meio sanfoneiro, meio cangaceiro. No campo internacional o inacreditável Carlos Gardel não pestanejou em revelar que imitava o cantor Enrico Caruso – um dos marcos da música no século XX.
Aqui no Rio Grande do Sul, Teixeirinha inspirou muita gente. O Gaúcho da Fronteira, hoje dono de um estilo próprio, iniciou sua carreira cantando músicas do “Rei do Disco”. Ele diz que Teixeirinha era o “homem a ser seguido”, um exemplo de sucesso nacional alcançado através da música regional. Não é a toa que o autor de “Vaquinha preta” foi chamado por muitos de Teixeirinha da Fronteira.
Mas, diante de tudo isso, lanço um desafio: em quem Teixeirinha se inspirou? Com certeza a pergunta não é fácil. Dono de uma carreira impecavelmente própria, Vitor Mateus Teixeira admirava os artistas do rádio, principalmente aqueles da chamada “Era de Ouro”. Suas canções mostram um artista impregnado pelo gênero musical regionalista, mas dividido entre as composições de Francisco Alves, Noel Rosa, Herivelto Martins, etc.
Contudo, traçando paralelos aqui e ali, acabei descobrindo que há um artista que inspirou (e muito!) a obra de Teixeirinha: Vicente Celestino. Cantor e compositor de “outras eras”, Vicente Celestino (1894-1968) nasceu no Rio de Janeiro. No começo da carreira trabalhou em musicais e em 1919 gravou seu primeiro disco. Até os anos 1930, Celestino foi um dos cantores mais vendidos do Brasil. Por esta época, mais precisamente em setembro de 1933, casou-se com Gilda de Abreu (1904-1979) após um namoro de apenas cinco meses.

Vicente Celestino no início da carreira: operetas e milhares de discos vendidos

Celestino tinha voz operística e jeito de galã. Suas músicas ficaram marcadas pela alta carga de drama e romantismo. Seu maior clássico, “O Ébrio” (1936), tornou-se uma marca. Na maioria das vezes, as histórias cantadas por ele terminam com o amante que morre exatamente por amar demais...
Teixeirinha tinha considerável apreço pela obra de Vicente Celestino. Não há registros de que tenham se conhecido pessoalmente e Celestino nunca falou publicamente sobre Teixeirinha. Mesmo assim, tudo indica que o “Rei do Disco” era um fã inveterado do cantor carioca e que se baseou em músicas dele para compor alguns de seus sucessos.
Já em 1961, no primeiro LP, Teixeirinha resgata o tema de “O Ébrio”. Em “Ébrio de amor”, ele mostra que só a bebida o fará esquecer a mulher amada. Assim como no ébrio de Vicente Celestino, este viverá aos porres, bebendo e chorando pelos bares da vida:

Bebo como um louco
No inferno do amor
A vida é um horror
Pra ela e pra mim
Somente o orgulho
Nos traz separado
Um pra cada lado
Este é o nosso fim

Em 1977, com “Conselho aos ébrios”, Teixeirinha trouxe de volta, mais uma vez, o tema:

Eu andei bebendo
Sofrendo e chorando
Curtindo, amargando
A ‘saudades’ de alguém

Eu não me acalmava
Me desencontrava
Às vezes chorava
Por não ter ninguém

Duas músicas, o mesmo tema. Beber, chorar e beber mais um pouco. Já era esta a sina do sofredor cantado por Vicente Celestino em 1936:

Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas, vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou

É impressionante, mas Vicente Celestino e Teixeirinha têm muito mais em comum do que as músicas sobre ébrios mal-amados. Em 1936, Celestino e sua esposa Gilda de Abreu levaram para as telas o filme “O ébrio”. Mais do que filmar a historia de Gilberto, um médico de sucesso que transforma-se num tremendo beberrão, o casal investiu numa fórmula muito utilizada até hoje: uma música de sucesso servindo de roteiro-base para um filme. Coincidência ou não, Teixeirinha era um grande fã desta fita. Por conta disso, o “Rei do Disco” teria assistido a produção inúmeras vezes, tendo a idéia de transformar o seu próprio sucesso (“Coração de Luto”) em filme.

Cena de "O Ébrio", produzido em 1936

Da coleção de “acasos”, podemos citar ainda o segundo e último filme no qual Celestino atuou. Chamou-se “Coração materno”, foi lançado em 1937 e também dirigido por Gilda de Abreu. O leitor já deve ter ligado o nome à pessoa, mas cabe completar a história. Supondo que Teixeirinha fosse fã de Vicente Celestino, não seria loucura imaginar que “Coração materno” (que também foi uma canção de sucesso gravada por Celestino) foi uma longínqua inspiração para outro coração: o de luto!
Até aí suposições, coincidências talvez. Acasos de um destino que fez também com que os dois cantores fossem rapidamente assimilados às figuras de suas companheiras de trabalho (e de vida afetiva). Para o público, Vicente Celestino e Gilda de Abreu eram admirados assim como Teixeirinha e Mary Terezinha.
Coincidências e acasos que poderiam passar desapercebidos não fossem duas canções que não deixam dúvidas: Teixeirinha inspirou-se em Vicente Celestino ao menos uma vez. A prova contundente surge da comparação entre as músicas “Noite cheia de estrelas” – composta por Cândido das Neves e gravada por Celestino em 1932 – e “Lua cheia” – escrita e gravada por Teixeirinha em 1978.
Em “Noite cheia de estrelas”, conta-se a história de alguém que está perdidamente apaixonado e apela para a lua, pedindo-lhe que ela desperte a amada para que os dois possam viver felizes. Na primeira versão, a letra foi gravada por Vicente Celestino no ritmo de cancioneta. Tempos depois, a letra ganhou uma nova gravação, agora no formato de tango. No refrão, a bela composição mostra toda sua carga sentimental:
Lua, manda tua luz prateada despertar a minha amada Quero matar meus desejos Sufocá-la com meus beijos Canto e a mulher que eu amo tanto não me escuta, está dormindo Canto e por fim nem a lua tem pena de mim Pois ao ver que quem te chama sou eu entre a neblina se escondeu
Quarenta e seis anos depois (pasmem!), Teixeirinha gravou o tango “Lua cheia”, a história de um homem que morre de amor por sua amada. Na letra, fica evidente que o “Gaúcho Coração do Rio Grande” está contando a história daquele mesmo rapaz cantado por Celestino. O detalhe é que na composição de Teixeirinha, o amante – perdidamente apaixonado – acaba morrendo. Lançada dez anos depois da morte de Celestino, a composição até desperta um certo mistério: teria sido composta em homenagem ao cantor morto? Seria o seresteiro apaixonado de “Lua cheia” o próprio Celestino, ao passo que o amigo – que na canção herda o violão do falecido – seria Teixeirinha? Não sabemos o que se passa pela mente dos compositores. O que impressiona é o fato de Teixeirinha citar literalmente um trecho da música “Noite cheia de estrelas” como refrão de “Lua cheia”. Enfim, tirem suas próprias conclusões. A seguir, a letra de “Lua Cheia”:

Lua cheia apareceu por trás do monte
Era ontem, quando tudo aconteceu
Eu voltava do sepulcro de um amigo
Que de amor, por uma mulher morreu

Foi comigo, exatamente, certa vez
Ele era assim esgueiro como eu
Na janela da amada em serenata
Cantou algo que muito me comoveu

Lua,
Manda tua luz prateada
Despertar a minha amada

Esta canção ele cantou
Pra mulher que tanto amou
Na sua vida passada

Essa lua, era mesma aquela lua
Que pra sua idolatrada ele exclamou
Ela veio pratear a campa fria
Do eterno apaixonado que tombou

O violão que era dele ia comigo
Que um dia, antes da morte, me entregou
Afinei, cantei ontem para a lua
Toda a mágoa que consigo ele levou

*

Lua cheia, dos eternos namorados
Inspirados no teu sublime luar
Eu também busco em ti a poesia
Para agora o meu amigo homenagear

Companheiro, por ti estou vendo a lua
Lá no alto provocando o meu cantar
Esta lua que te uniu àquela ingrata
Fará hoje o pranto dela derramar

Lua,
Manda tua luz prateada
Despertar a minha amada

Esta canção ele cantou
Pra mulher que tanto amou
Na sua vida passada

Velho amigo, lá no céu, já entre tantos
Desencantos de uma mulher que erra
Estão todos lá bem acima do lua
Essa lua, que mil versos ela encerra

Também vai encerrar minha canção
Para o amigo que ontem deixou a terra
No amor, quando um ama e outro não
É mais triste do que a sina de uma guerra

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