REI DO BARALHO

>> 17 de ago. de 2007


Vez por outra abordo músicas que marcaram a carreira do talentoso Teixeirinha em seus quase 30 anos de carreira artística. Como já declarei em outras matérias, creio que as músicas seguem sendo sua principal marca, muito mais do que seus filmes ou shows. Nesta semana, ouvindo Teixeirinha e pensando no texto da semana, reparei que um grande sucesso do cantor está completando 45 anos de vida. Estou falando do clássico “Rei do baralho”.
O LP era “Saudades de Passo Fundo” (Chantecler, 1962, CH 3041), o quinto lançado por Teixeirinha. No lado A, o carro-chefe ficou por conta da milonga “Volte papai” e no lado B, a faixa principal era o xote “Saudades de Passo Fundo”, que era também a música de trabalho do disco. Entre as 12 faixas do long-play, destacam-se algumas “pérolas”, tais como o xote “Gaúcho andante” e o tango “Adeus Carmen Miranda”. Porém, talvez nenhuma delas tenha repercutido tanto quanto “Rei do baralho”.
A oitava faixa do LP (segunda no lado B) foi originalmente gravada no ritmo da milonga, com acompanhamento de violão, gaita e pandeiro – num arranjo muito próximo àquele que caracteriza boa parte da música folclórica uruguaia. Cada parte da letra foi formada por quatro versos de quatro estrofes. As rimas, sempre perfeitas, formam frases que, do início ao fim da música, rimam com o final “ão” (apresentação, munição...).
Nos pouco mais de três minutos da milonga, Teixeirinha incorpora o próprio Rei do Baralho, um homem de poucos escrúpulos, viciado na jogatina, capaz de perder até a alimentação dos filhos numa mesa de jogos. Nas duas primeiras partes, o Rei do Baralho conta sua história, as noites regadas à “canha” e carteado, e as brigas que envolvem os jogadores. Na parte final, é mostrada a recuperação do homem que parecia perdido. Levado por sua filha até uma igreja, o Rei do Baralho descobre os erros que cometeu e abandona o jogo para sempre.
Uma história simples, mas comovente. “Rei do baralho” tornou-se uma das canções de maior sucesso daquele LP e de toda a carreira de Teixeirinha. Por quê? É evidente que não podemos explicar com facilidade os motivos pelos quais uma música faz sucesso. Porém, podemos supor que em “Rei do baralho”, Teixeirinha expressou uma história de forte apelo, com uma narrativa perfeita, sem faltar uma palavra, um verso. Contou algo bonito sem precisar de sofisticações. Aliás, nem mesmo refrão a milonga possui. Talvez por tudo isso, “Rei do baralho” seja lembrada até hoje, cantada por grupos e até mesmo nas casas pelo Brasil todo. Nas rádios, continua sendo uma das mais pedidas, perdendo em popularidade apenas para alguns clássicos como “Coração de luto”, “Tordilho negro”, “Tropeiro velho” e “Querência amada”.
Tamanho é o sucesso de “Rei do baralho”, que, em 2000, o cantor Humberto Gessinger (vocalista do grupo Engenheiros do Hawaii) declarou que gostaria muito de gravar a milionga. Acabou cantando “Coração de luto” ao lado de Luiz Carlos Borges em 2005, mas talvez ainda não tenha desistido da idéia de regravar o grande sucesso do “Gaúcho coração do Rio Grande”. Quem sabe um dia não teremos esta que, ao que sei, seria a primeira regravação de “Rei do baralho” desde 1962, quando foi originalmente lançada.
Enfim, mais uma música, mais um sucesso. Aliás, sucesso fácil de ser encontrado hoje em dia. Está remasterizada no formato digital desde 2005, quando a Galpão Crioulo Discos lançou a coletânea “Gauchíssimo”, contendo grande parte da obra de Teixeirinha pelas gravadoras Chantecler e Continental. O CD contendo “Rei do baralho” é o número 12 da série (“Saudades de Passo Fundo”). Lá, você encontra, na bela voz de Teixeirinha, esta letra:

*

Eu fui o rei do baralho
Homem de má intenção
Jogar carta, beber canha
Era minha inclinação

Quando eu sentava no jogo
Sentava de prevenção
No cinto um revólver Smith
Muita bala e um facão

Já pedia uma cachaça
Misturada com limão
Puxava o chapéu pros olhos
E misturava o carvão

Roubava uma carta e duas
Jogava outra no chão
Botava outra no bolso
Tava feita a tapeação

*

Um parceiro ou outro via
Já me chamavam atenção
E, brabo, eu virava a mesa
Me chamavam de ladrão

Outro mais gato gritava:
‘Termine com a discussão’
Seguia o jogo de novo
Vergonha não tinha não

Quando amanhecia o dia
Não me restava um tostão
Chegava em casa com sono
Já dava outra explosão

A mulher pedindo roupa
Os ‘filho’ pedindo pão
E eu não tinha pra dar
Que maldita profissão

*

Um dia a minha filhinha
Me agarrou pela mão:
‘Papai, você me acompanhe
Pra uma apresentação’

E me levou numa igreja
Onde reina a devoção
Me apresentou para o padre
Que me fez a confissão

Depois de muitos conselhos
Eu chorava de emoção
Tomei a hóstia sagrada
Minha santa comunhão

Daquele dia pra cá
Tenho Deus no coração
Nunca mais peguei baralho
Me livrei da tentação


TEXTO: Chico Cougo
FOTO: Capa do LP "Saudades de Passo Fundo" (Chantecler, 1962)

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